Charla Tradicionalista
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Prendada - Sidney Bretanha

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Mensagem por Francisco Silveira Qui Ago 26, 2010 6:24 pm

PRENDADA

Sidney Bretanha

... Poesia eleita como a segunda melhor do Rio Grande do Sul no ENART 2009


I


“-É uma menininha, patrão!” – foi o que disse a parteira
Segurando, firme, na mão, a tesoura de tosquia
Que me partiu o umbigo sob a friagem campeira
E o pampa me deu abrigo em heranças de valentia!
Vim assim de um jeito bruto, no final do mês de agosto
Também um dia de luto, por minha mãe que ali partiu
Vertendo em hemorragia, brotou-lhe a morte no rosto!
Vim assim sem alegria, pois a tragédia me pariu...
Mas segui o ensinamento, que meu pai trouxe de berço:
“-Se floresce em sofrimento, dará frutos de sucesso!”



II


E foi feliz minha infância dentre os moldes campesinos
Na calmaria da estância, brincando ao redor “das casa”
Banhava a nudez na sanga (longe do olhar dos meninos)
Nos lábios butiá e pitanga e milho assado na brasa
Na lida desde pequena, entre chaleiras e tachos
Polindo adaga e chilenas, preparando algum cozido
De manhã, bóia pros bichos, leite e afago pros guaxos
Já imaginava cambichos, fantasiava o proibido...
Bonecas de pano e louça foram ficando para trás
Queria logo ser moça, igual a tantas outras mais!



III


Sonhos de uma jovem prenda já brotavam dentro de mim
Feito um tropel (velha senda), conheci o ardor do sangue
Desejos comuns à idade acendiam feito estopim
Ânsias, paixões e vontade (ainda que o pai se zangue)
Vestido de renda e chita, a carne nova em convulsões
Tranças e laços de fita... Tão prendada e tão faceira...
Dos flertes na missa das seis, cortejos de tantos peões
Meu pai disse: “Ai de vosmecê, se embarrigar solteira!”
Só encurtei a distância entre o amor e a solidão
Num churrasco, lá na estância, quando pediram a minha mão!


IV


“-É um lindo menino, sinhá!” – me disse, ali, a parteira
Quando vi meu ventre sangrar... Outro dos nove rebentos
Surgia na porta meu homem (tinindo espora e açoiteira):
“-O piá terá meu nome, é mais um no testamento!”
Fiz de tudo por meus filhos, mamaram todos no peito
(Carneávamos um novilho nos dias de aniversário)
A família me concebeu, fui senhora de respeito
Da avó herdei o camafeu, de minha mãe um rosário!
Deixei meus sonhos perdidos, pois a vida sabe o que faz
E sempre honrei meu marido... Igual a tantas outras mais!



V

Segui uma sina caseira com bordados, forno e fogão
A lida por companheira e o alambrado por varal
Cosendo pano e bombachas e também socando pilão
Prenda que já não se acha, fui feita para a vida rural
Na paz do pampa cinzento, varrendo todo o terreiro
Cabelos soltos ao vento e chinelos de couro cru
Num perfume feminino (orvalho sobre o canteiro)
Brota o feitio campesino, comum às mulheres do sul
Por amar tanto a querência (aconchegada entre amargos)
Enraizei minha essência no solo fértil do pago!


VI


As retinas nos retratos (lágrimas no chão batido)
Movimentos inexatos e o permanente cansaço
Um chale rendado esquenta o corpo velho e doído
E uma bengala acalenta a insegurança do passo
Cada filho teve um rumo e meus dias foram iguais
As vistas fora do prumo, num marejar teatino
Meu tempo virou poeira (feito o sebo nos castiçais)
Já sei que a mulher campeira segue esse vago destino
E quando menos espera toda a história se desfaz
Feito flor sem primavera... Igual a tantas outras mais...

VII

Ringe a cadeira de embalo no assoalho da varanda
E cada hora é um regalo que Deus me dá de lambuja
Pois o tempo é fera cruel que nunca pede, só manda
E fico a imaginar o céu, antes que a vida me fuja
Vou balançando a cadeira – meio criança e anciã
Como já disse a parteira: “-Só uma menininha, é o que sou!”
Tão frágil e indefesa, sem esperar o amanhã
Somente a mesma certeza que meu mundo, enfim, se acabou
Qual minha mãe, num cafundó, vivi feliz e tive paz
Também igual a minha avó ... E igual a tantas outras mais!


Copiada do site www.ctgtropeirosdaquerencia.com
Francisco Silveira
Francisco Silveira
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